História Mundial - Marxismo

@ProfJoaoDaniel Me desculpo com antecendência pelo textão.

Na aula da semana passada tu disseste que a diferença entre o Socialismo Utópico e o Marxismo era que o Socialismo Utópico argumentava por uma transição gradual, enquanto o Marxismo pressupunha um projeto revolucionário. Porém, a minha interpretação lendo o livro “Karl Marx: Filosofia e Revolução” de Shlomo Avineri é um pouco distinta. No livro é realçado o fato de que sociedade socialista, a qual existiria antes do comunismo, manteria características da sociedade anterior, a capitalista. Também, o livro dá a entender uma aversão de Marx com a violência e o uso do terror, sendo um dos motivos para o seu conflito com Bakunin, o que sugere um distanciando do Marxismo com as revoluções russa e chinesa que vieram depois.
Abaixo eu botei alguns dos trechos do livro (em inglês) que se referem a esses pontos.

A minha pergunta é como seria esse projeto revolucionário de Marx e por que não seria gradual? Se o socialismo, que viria entre o capitalismo e o comunismo, teria características capitalistas, isso não implicaria uma gradualidade no processo?
Também, pode ser uma associação errônea, mas eu vejo revoluções como sendo quase sempre, senão sempre, violentas (Revolução Francesa, Revolução Americana, Revolução Farroupilha, etc.). Se Marx tinha uma aversão a violência e ao terror, isso não sugeriria que o Marxismo seria algo reformista no lugar de revolucionário, ainda mais com a ideia de que o socialismo manteria características do capitalismo antes de virar comunismo?

“the transition from capitalism to socialism will be an outcome of internal changes within capitalist society itself” (Avineri 2019, 170)

“What we have to deal with here is a communist society not as it has developed on its own foundations, but on the contrary, just as it emerges from capitalist society, which is thus in every respect, economically, morally, and intellectually, still stamped with the birthmarks of the old society from whose womb it emerges” (Avineri 2019, 170)

“violent practices would ultimately determine the nature of the revolution once it gained power: a movement based on terror, intimidation, and blackmail will ultimately produce a society based on these methods as well” (Avineri 2019, 164)

“Marx viewed with great concern the tendency of Bakunin and his Russian followers to use violence, personal terrorism, and assassination in their activities” (Avineri 2019, 164).

Avineri, Shlomo. 2019. Karl Marx : Philosophy and Revolution. Yale University Press.

Não sou o João Daniel e nem sou especialista. Na falta de uma outra resposta, vou tentar ajudar… Sintam-se livres para contestar…

Sobre os resquícios de capitalismo no socialismo, acho que o autor (não li) pode estar querendo dizer é que o modo de produção, ainda que vire dominante, não irá eliminar de uma hora para outra as antigas relações (temos até hoje relações de trabalho análogas às feudais em vários lugares do mundo). O mesmo vale para o campo das ideias (existem no mundo monarquicas absolutas). Nenhuma transição, por mais brusca que seja, acontece do dia para a noite. Por exemplo, no mercantilismo, fica clara a coexistência entre mais de um tipo de produção:

“Nossa proposta sobre o caráter da época mercantilista é uma tentativa de englobar e superar as três perspectivas acima. Trata-se de reconhecer, por um lado, a existência, ainda, de relações feudais e, por outro, afirmar também a existência, já, de relações de tipo capitalista. Um feudalismo em crise, em processo de desagregação continuada; um capitalismo incipiente, todo um processo de acumulação primitiva, ou, segundo E. Balibar, um capitalismo ainda formal e não propriamente real. Até aqui, porém. o que estamos postulando é uma espécie de dualismo estrutural baseado na coexistência e na interdependência de relações feudais e relações capitalistas”. (Francisco Falcon, Mercantilismo e Transição, pg. 20)

Isso não quer dizer que seja um processo pacífico ou reformista. A classe dominante vai lutar pela manutenção de seus privilégios, por isso foram necessárias que as revoluções burguesas tomassem de assalto o Estado. Para que houvesse a consolidação da burguesia como classe dominante, a mentalidade da época teve de ser moldada por meio de vários processos de rupturas, de maior ou menor violência, com a mentalidade e com a relação de produção anterior.

Ainda que eu desconheça essa disputa com Bakunin sobre a violência (se existir mesmo, talvez seja sobre a violência sem finalidade revolucionária). Marx estava bem ciente de que é um processo não pacífico, pois para ele o motor da história é justamente a luta entre as classes. As sociedades geraram contradições materiais entre as classes, que disputaram por uma nova sociedade, que foi gerando outras classes em disputa e assim por diante até os dias de hoje, quando as condições materiais permitiram a classe trabalhadora, por meio do socialismo, vislumbar o comunismo (uma sociedade sem classes). Há uma célebre frase dele nesse sentido: "A violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova.”

Pelas citações que colocou, eu teria um pouco de cuidado com esse autor… Espero ter ajudado

Bom dia, fico feliz de alguém ter respondido. Não sei se tu viste, mas na aula de História do Brasil de segunda eu mencionei a pergunta pro professor e ele me pediu para mandar por email. Assim que ele responder eu posso postar aqui também (se ele autorizar).

Sobre os resquícios do capitalismo. Posso ter interpretado errado, mas o teu primeiro parágrafo dá a entender uma gradualismo no processo, sendo ele revolucionário ou não, no caso do feudalismo o “dualismo estrutural baseado na coexistência e na interdependência de relações feudais e relações capitalistas” também dá a entender uma gradualismo. Como tu disseste, “nenhuma transição, por mais brusca que seja, acontece do dia para a noite” o que inevitavelmente sugere gradualismo.

Sobre o ponto da violência, eu vou primeiro dar uma opinião minha e depois dar outros exemplos que sustentam essa ideia.

No meu ver existe dois Marx. O Marx de circa 1848, jovem de 30 anos, que via as revoluções do mesmo ano e queria participar ativamente e publicou o Manifesto para ‘acordar’ o proletário. E o Marx de circa 1870-1883, o qual viu as mesmas rebeliões de 1848 serem violentamente reprimidas, a comuna de Paris também resultar na morte de milhares, entre outros eventos. Na vida privada Marx passou dificuldades na Inglaterra, viu diversos filhos seus morrerem e foi expulso de diversos países e expatriado. No meu ver essas experiências podem ter despertado um ‘humanismo’ em Marx onde ele já não via a violência como algo necessário. Reitero que isso é a minha opinião, baseada em um achismo por tudo que li sobre o homem.

Sobre Avineri, ele foi leitura obrigatória na universidade, então creio que seja um autor confiável. Ele tem diversos trabalhos sobre o Marxismo, esse livro de 2019 acho que é apenas o mais recente. De qualquer forma, eu escolhi citar ele por praticidade, como eu disse, foi leitura obrigatória na universidade, então eu só peguei as minhas anotações da aula e dei um ctrl F para achar as partes relevantes com facilidade. Abaixo eu vou citar trechos do livro Rumo à estação Finlândia de Edmund Wilson que também sugerem uma ideia parecida.

“A Comuna de Paris tivera o efeito de estimular o programa dos bakuninistas, que pregavam a ação direta em oposição à estratégia paciente de Marx.” (324)

“Em seus últimos anos de vida, Marx por vezes reconhecia - vejam-se suas conversas com H. M. Hyndman e seu discurso pronunciado numa assembléia dos trabalhadores realizada em Amsterdã em 8 de setembro de 1872 - que em países democráticos como Inglaterra, Holanda e Estados Unidos havia a possibilidade de que a revolução fosse realizada por meios pacíficos, mas na prática o efeito geral de seus ensinamentos (apesar das iniciativas revisionistas dos socialdemocratas alemães) tem sido levar as pessoas a esperar uma colisão gigantesca entre as classes.” (372)

Na página 379 (pra eu não escrever a página toda) Wilson fala que no Manifesto Comunista Marx afirmou que a velha sociedade seria substituída, mas não explicou com o que. Já na Crítica ao programa de Gotha, Marx deu algumas indicações de como essa sociedade seria, argumentando o mesmo que Avineri, “A nova ordem, gerada do ventre da velha, inevitavelmente nascerá parecida com ela. As classes terão sido abolidas, contudo ainda haverá desigualdade” (379).

A primeira citação no meu ver mostra novamente um gradualismo no pensamento de Marx. Também mostra uma diferença no pensamento com Bakunin (Essa rixa não é tão relevante pro meu argumento, usei apenas como exemplo, mas se tiver interessado em pesquisar mais o conflito começou na Primeira Internacional e cresceu a um nível onde Bakunin foi expulso da Primeira Internacional).

A segunda eu botei aqui simplesmente para indicar essa transição ao pacifismo de Marx (Dito isso nessa mesma época se não me engano ele também começou a ver como possível uma Revolução na Rússia, mas nesse caso seria mais violenta).

Para concluir, eu acho importante também lembrar da carta de Engels para Eduard Bernstein, onde Engels discutia as peculiaridades do Marxismo na França e alega que Marx disse ‘Ce qu’il y a de certain c’est que moi, je ne suis pas Marxiste’ (Se algo é certo é que eu não sou Marxista). Que no meu ver sugere uma divergência do pensamento que estava vindo a ser considerado Marxista com as ideias de Marx nessa fase da vida dele. Isso pode indicar que o meu argumento da existência de dois Marx, com Marx amadurecendo ao longo da vida, tenha fundamento, ou que Marx não mudou mas que o Marxismo foi sequestrado por outros pensadores e ‘saiu do controle’ de Marx, tomando rumos divergentes a ideologia do próprio.

Desculpa pelo textão, espero que meus argumentos sejam coerentes e estou ansioso para saber a tua opinião sobre o assunto. Depois eu posto a resposta do Professor aqui também para enriquecer a discussão.

Ansioso para uma resposta do João Daniel, porque eu discordo bastante de algumas de suas colocações e inclusive dos autores de algumas das suas citações…

Sobre a graduação do processo, acho importante salientar que a remoção desses resíduos da formação anterior não se dá de forma natural. A classe dominante busca ativamente a substituição da mentalidade e relações produtivas anteriores, utilizando para isso, do Estado — e é preciso controlá-lo primeiro. Para mim, é gradativo no processo destas substituições, mas é ruptura no que diz respeito ao controle do poder político…

“Isso significa que, enquanto as outras classes, especialmente a classe capitalista, ainda existirem, enquanto o proletariado lutar com ela (pois, quando este alcança o poder de governo, seus inimigos e a velha organização da sociedade ainda não desapareceram), ele deve empregar meios coercitivos, portanto, meios governamentais. Ele próprio ainda é uma classe, e as condições econômicas de que derivam a luta de classes e a existência das classes ainda não desapareceram e devem ser coercitivamente removidas do caminho ou transformadas, sendo esse processo de transformação forçadamente apressada.” (Marx, 1873 disponível em: Comentários de Marx a “Estatismo e Anarquia” de Bakunin)

Vale lembrar que “devem ser coercitivamente removidas”, é uma remoção da classe, não do indivíduo.

Quanto a citação que diz da revolução sendo atingida de forma democrática, eu fui atrás da citação original de Marx:

“Sabemos que há que ter na devida conta as instituições, os costumes e as tradições dos diferentes países; e não negamos que existem países como a América, a Inglaterra, e se conhecesse melhor as vossas instituições, acrescentaria a Holanda, onde os trabalhadores podem atingir o seu objectivo por meios pacíficos. Se isto é verdade, também devemos reconhecer que na maior parte dos países do continente a força é que deve ser a alavanca das nossas revoluções; é à força que se terá de fazer apelo por algum tempo a fim de estabelecer o reino do trabalho.” (Discurso de Marx, Congresso de Amsterdã de 1872. O Congresso da Haia)

Ainda que não tenha achado essas cartas trocadas com Hyndman, e admitindo que minha citação possa ter um problema de tradução, note que ele usa a palavra objetivos, não revolução. A revolução é o objetivo maior do proletário, mas não é o único. Nesse balaio entram melhorias na qualidade de vida do trabalhador, organização etc… De qualquer forma, a história foi incapaz de mostrar um único exemplo de socialismo sendo alcançado por vias democráticas.

Outro ponto é nessa divisão que fez de um Marx mais humanista.
Acredito que ele pensava nessa violência revolucionária desde sempre de forma humanista: a única forma de libertar a opressão do trabalhador. Ela não é desejável, mas sim uma consequência das transições de poder político entre classes, demonstrada pela própria história.
Econtrei uma entrevista dele ao The World já em 1871 na qual ele não descarta a violência para atingir objetivos políticos:

“R. Landor: E que propósitos tem essa união?
K. Marx: A emancipação econômica da classe trabalhadora pela conquista do poder político. O uso desse poder político para fins sociais. […] Em cada parte do mundo, surge um aspecto particular do problema, e os trabalhadores locais tratam desse aspecto à maneira deles. As associações de trabalhadores não podem ser idênticas em Newcastle e em Barcelona, em Londres e em Berlim. Na Inglaterra, por exemplo, a maneira de demonstrar poder político é óbvia para a classe trabalhadora. A rebelião seria uma loucura enquanto a agitação pacífica seria uma solução rápida e certa para o problema. Na França, uma centena de leis de repressão e um antagonismo moral entre as classes parece precisar de uma solução violenta para a luta social. A escolha dessa solução é um assunto das classes trabalhadoras daquele país.”
https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/07/18.htm

Por último, sobre ele não se considerar um marxista. Eu já li em algum lugar, peço desculpas por não lembrar a fonte, que isso se dava não pela teoria em sí, mas pelo fato de que o termo era usado para atacar suas ideias — somente depois veio o sentido positivo do termo. Ele mesmo referia a teoria como comunismo (até porque seria no mínimo estranho criar uma teoria e batizá-la com o próprio nome). Algo parecido se deu com Lênin, que reclamou do uso de Leninismo, pelos seus seguidores, para suas ideias)

Cara, obrigado de novo por seguir respondendo.

Primeiramente, sobre o último parágrafo. É bem lógico ele não querer usar o nome próprio dele, fala a verdade isso nem passou pela minha cabeça hahahahaha. Mas, (com o meu entendimento do livro de Wilson) eu também acho que o fato de Marx brigar e entrar em conflitos com outros pensadores, dos quais muitos, no meu entender, se viam como seguidores de, ou influenciados por, Marx antes desse conflitos, pode afetar isso. Por exemplo, eles seguiam sendo taxados de Marxistas mesmo depois de se distanciarem de Marx. Isso poderia levar a alterações na forma que outros viam o Marxismo. Não sei como o Marxismo era visto no século XVIII, mas considerando as inúmeras tentativas de revisionismo e as divergências entre pensadores hoje em dia, eu suponho que possa ter sido algo fluido.

De resto eu gostaria de voltar ao ponto original do Professor “a diferença entre o Socialismo Utópico e o Marxismo era que o Socialismo Utópico argumentava por uma transição gradual, enquanto o Marxismo pressupunha um projeto revolucionário” (Do primeiro post).

Acho que na questão da transição gradual, o ponto chave seria o que é gradual. Por exemplo, quando há um novo presidente eleito tem um período de transição, onde ministros novos e velhos trabalham juntos, antes do novo presidente assumir. E mesmo depois ainda tem que lidar com as consequências das políticas anteriores e ir introduzindo a nova agenda. Por outro lado, a mudança do Presidente é instantânea, 1 de janeiro um sai o outro entra. O meu ponto é, por mais que a revolução chegue ao poder de forma rápida, a introdução da nova ideologia é um processo gradual, e pra ser sincero acho que tu vês da mesma forma. Tipo no meu ver, a simples existência do Socialismo entre o Capitalismo e o Comunismo necessariamente sugere uma transição gradual dentro da ideologia Marxista.

Em comparação, o Anarquismo de Bakunin chegaria ao poder e aboliria o estado imediatamente, algo muito mais instantâneo. Marx, por outro lado, como tu mesmo disseste, manteria o estado e o usaria para avançar os objetivos socialistas.

Sobre a parte da transição pro socialismo ser pacifica ou não: A minha pergunta inicial também inclui o fato de se revoluções são necessariamente violentas ou não? Eu não sei a resposta e sinceramente aceitaria qualquer um dos lados se sustentado com bons argumentos. Mas se for violenta por natureza, o simples fato de Marx considerar possível a transição ser pacifica em alguns países faz com que o “projeto revolucionário” não seja pressuposto pelo Marxismo. “Na Inglaterra, por exemplo, a maneira de demonstrar poder político é óbvia para a classe trabalhadora. A rebelião seria uma loucura enquanto a agitação pacífica seria uma solução rápida e certa para o problema” (da tua resposta). Nessa frase eu também notei o contraste entre a rebelião e agitação pacifica, sugerindo que a rebelião não seria pacifica (Rebelião é diferente de revolução mas nesse contexto eu acho que talvez sejam quasi-sinônimos).

No meu primeiro post eu acho que passei mesmo uma ideia de Marx ser pacifista, mas no segundo ficou mais relativo. A minha intenção foi chamar a atenção para o fato da transição pro Socialismo poder ser feita de forma pacifica em alguns países. Eu reconheço a necessidade de violência dentro do Marxismo. Como disse no post anterior, mais tarde na vida de Marx ele começou a ver uma revolução na Rússia sendo possível, a qual seria violenta, uma mudança ao pensamento anterior, onde ele havia argumentado que toda a vez que a Rússia se envolvia em conflitos europeus a revolução era atrasada (se quiser eu posso buscar a citação, mas já vou avisando que acho que é Avineri).

Acho que o centro dessa discussão está na definição das palavras e talvez nas nossas divergentes interpretações de oque seria o gradualismo. Houve poucas coisas nos teus posts que eu discordei, eu concordo com a tua articulação de como seria a transição para o socialismo e que no ver de Marx a violência seria necessária em alguns países para a revolução. Acho também que tu concordas que Marx via situações onde essa transição de poder seria pacífica.

No caso de revolução, acho que já está ligada ao Marxismo, diversas vezes nesse post eu me vi querendo escrever revolução em situações onde a transição seria pacífica. Como mencionado acima eu não sei se são violentas por natureza, mas se não forem violentas eu vejo Marxismo como pressupondo a revolução, mesmo assim com gradualismo.

Última coisa, hoje eu acho que não vou conseguir atender a aula de História Mundial (se der sorte eu pego o comecinho), senão falaria em aula, mas mesmo assim, no momento em que o Professor me responder eu vou pedir pra ele olhar a nossa conversa aqui, porque acho que enriqueceu e clarificou bastante a pergunta inicial.